DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS
A supremacia da Constituição Federal é um postulado maior
no estado de direito. O texto constitucional é hierarquicamente superior a
todos os demais atos normativos do sistema jurídico brasileiro. Ao
se interpretar a Constituição se deve buscar o significado e o sentido de suas
normas, bem como, sua aplicação no plano fático. O poder legislativo é
competente para realizar a interpretação autêntica do texto constitucional,
desde que levada a efeito por intermédio de emendas à Constituição. O Senado Federal
interpretou a Constituição Federal durante a sessão de votação do impeachment
da presidente da República, sem, porém, atender ao único requisito necessário: uma
emenda constitucional. Questões importantes se colocam a esse título. Mas,
analisaremos aqui apenas uma. Por que a interpretação do Senado durante o impeachment
da presidente da República poderá influenciar casos análogos que tenham como
fundamento a Lei da Ficha Limpa?
A Constituição Federal
no artigo 52, parágrafo único, diz que o impeachment
do presidente da República se dará com dois terços dos votos do Senado Federal,
e o condenará "à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o
exercício de função pública". O Senado Federal, acatando ao entendimento do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), interpretou a Constituição e separou as penas nela
previstas, tornando-as independentes e autônomas: perda do cargo, por um lado, e
inabilitação, por outro. Ao decidir estabelecer uma divisão independente e
autônoma das penas, o Senado interpretou a Constituição, baseando-se no
regimento interno da casa – norma infraconstitucional – e, extrapolou sua
competência de legislador. A perda do cargo foi aprovada por 61 senadores,
portanto, dois terços dos votos; enquanto que a inabilitação foi aprovada por 42
senadores, não atingindo, assim, o quórum constitucional necessário para
impingir a pena de inabilitação. Diante da ilegalidade praticada, fica aberta a
possibilidade de exame da questão pelo (STF). Não
examinaremos aqui as razões que poderiam basear tal recurso ao STF.
A
questão que nos importa é se o fato de o Senado ter interpretado a Constituição
diferentemente do que lhe é permitido, dividindo as penas e a votação, poderia servir
de precedente em casos análogos de cassação de parlamentares, permitindo que
esses deixem de ficar inelegíveis. Antes de mais nada, vale lembrar que como a inelegibilidade
do presidente da República está prevista na Constituição, a Lei da Ficha Limpa (LeiComplementar 135/2010) não inclui como sujeitos à pena de inelegibilidade previstos por essa Lei o
cargo de presidente, nem o de vice-presidente entre outros. É verdade que a aplicação da Lei
da Ficha Limpa é automática e o legislativo não teria o poder de impedir sua
aplicação. Entretanto, só ficam inelegíveis por oito anos os parlamentares que
tenham perdido seus respectivos mandatos por violação aos incisos I e II doArtigo 55 da Constituição, incisos esses que tratam da proibição de cargo em empresa e da falta
de decoro (Artigo 1o, letra b da Lei da Ficha Limpa). E nos casos
dos incisos I e II, a perda do mandato é decidida, por maioria absoluta, pela
Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, conforme o caso. É necessário, portanto, a
votação de cassação de mandato realizada pelo poder legislativo.
Como o Senado entendeu
que para o cargo de presidente da República temos duas penas
distintas e autônomas, perda do cargo e inabilitação, sendo admissível a
perda do cargo sem a inabilitação, esse entendimento leva, para o plano do direito, dois pesos e duas medidas, quer se trate do executivo ou do legislativo. Assim, a perda de mandato ou do
cargo levaria automaticamente à inelegibilidade somente aos parlamentares, em
razão da Lei da Ficha Limpa, ficando o cargo de presidente sujeito a regime diverso
e mais favorável. Por amor à argumentação, a intenção do legislador foi então de
aplicar a dura pena da inelegibilidade à perda do mandato somente aos parlamentares,
permitindo interpretação mais flexível e menos dura quando se tratar do cargo de presidente? Fica
claro que o entendimento dado pelo Senado não só trouxe insegurança jurídica como elementos de peso que poderão levar à impunidade. Se a presidente Dilma Rousseff pôde perder o mandato mas não ficar inabilitada, por qual razão o deputado Eduardo Cunha pode vir a ser cassado e automaticamente se tornar inelegível? Sempre que se usa dois pesos, as duas medidas
que resultam colocarão em cheque a justiça e o direito.
“Não
carregueis convosco dois pesos, um pesado e o outro leve, nem tenhais à mão
duas medidas, uma longa e uma curta. Usai apenas um peso, um peso honesto e
franco, e uma medida, uma medida honesta e franca, para que vivais longamente
na terra que Deus vosso Senhor vos deu. Pesos desonestos e medidas desonestas
são uma abominação para Deus vosso Senhor”.
Bíblia sagrada, livro de Deuteronômio (25:13-16)