Artigo publicado no Estadão Noite de 18/07/2014
Banco dos
BRICS
Uma ameaça
às Instituições Gêmeas de Bretton Woods?
Brasil, Rússia, Índia, China e África do
Sul (BRICS) oficializaram nessa semana a criação de
um Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e a assinatura de um fundo, o Acordo
Contingente de Reservas ( fundo ACR), durante a reunião de Cúpula dos BRICS
2014, em Fortaleza. É o banco dos BRICS um
novo pilar de uma novíssima ordem econômica e política mundial? Ele e o fundo
ACR são uma ameaça às instituições gêmeas de Bretton Woods do pós-guerra, o Banco
Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI)? Ameaça? Talvez, mas só no
futuro.
Em 2001, o economista Jim O’Neil, criou o
acrônimo “BRIC” ou “países BRIC” para identificar quatro países emergentes –
Brasil, Rússia, Índia e China. Mais recentemente, este acrônimo foi expandido,
abrangendo também a África do Sul. A ascensão dos BRICS trouxe ventos fortes de
mudança para o cenário político e econômico mundial, sendo que a criação do
Banco dos BRICS e do fundo ACR é um sinal concreto da emergência de uma novíssima
ordem econômica mundial.
O objetivo do novo banco é financiar projetos de infraestrutura,
como também projetos relacionados com desenvolvimento sustentável, em princípio
nos países BRICS. O banco dos BRICS não será um
rival, pelo menos em tamanho por enquanto, para o Banco Mundial. O novo
banco é formado pelos países BRICS apenas, com um capital inicial de US$ 50
bilhões de dólares (sendo uma cota de US$ 10 bilhões para cada país membro),
capital esse que pode chegar até US$ 100 bilhões, futuramente. O acordo permite que outros países se associem ao banco
dos BRICS. Entretanto, os cinco países BRICS fundadores sempre deverão manter
um mínimo de 55% de participação conjunta.
Já o Banco mundial é composto
por 188 países, com um capital subscrito de US$ 223.2 bilhões de dólares. Os
EUA detém a maior participação acionária do Banco com 16%. A China detém 5.76%,
o que equivale a terceira maior participação acionária, com um capital de US$
12.86 bilhões. Embora para a China o valor investido no capital do banco dos
BRICS seja inferior ao investido no do Banco Mundial, a recíproca não é
verdadeira para o Brasil, Rússia, Índia e, especialmente, para a África do Sul.
O capital de 10 bilhões de
dólares de cada um deles no Novo Banco de Desenvolvimento é bem superior ao da
sua contribuição para o Banco Mundial.
Além do novo banco, durante
a Cúpula de Fortaleza, os países BRICS oficializaram o Acordo Contingente de Reservas que cria um fundo de reservas, como um mecanismo de
auxílio aos países BRICS em especial, frente a turbulências financeiras em seus
balanços de pagamentos. O acesso a esse fundo é possível também para outros
países. Seu papel é, portanto, muito semelhante ao desempenhado pelo FMI. O
valor do fundo será US$ 100 bilhões de dólares. Desse total, a China arcará com
US$ 41 bilhões e o Brasil, a Índia e a Rússia com US$ 18 bilhões cada um. A
participação no fundo pela África do Sul será de US$ 5 bilhões. Em caso de
dificuldades no balanço de pagamentos, o Brasil, a Rússia e a Índia poderão
sacar até o total do montante investido, ou seja até US$ 18 bilhões. Já a China só pode sacar até metade do valor
aportado, ou seja US$ 20.5 bilhões e a África do Sul tem o direito de retirar
até duas vezes o montante investido, isto é US$ 10 bilhões. O fundo ACR depende ainda, para sua efetiva entrada em
vigor, de sua aprovação interna pelos respectivos órgãos nos países BRICS – o Congresso
Nacional, no caso do Brasil.
O fundo criado pelo ACR tem
como “espelho-rival” o FMI. É quase desnecessário lembrar que o maior percentual
de votos no FMI é dos EUA, com 16.75%. É, também, o único país com poder de
veto na instituição. O Brasil tem 1.72% do percentual total de votos, a China tem 3.81%, a
Rússia 2.39%, a Índia 2.34% e a África do Sul 0.77%. A contribuição dos países membros do FMI
é determinada em razão do tamanho de suas respectivas economias, mas a
contribuição dos países não representa, necessariamente, o percentual de votos
na instituição. A maior contribuição financeira é a dos EUA. Atualmente, a
China é o terceiro maior financiador do FMI. E, o Brasil, a Rússia e a Índia
estão dentre os dez maiores financiadores do FMI. Ao compararmos a cota de
contribuição financeira da China para o FMI com sua contribuição de US$ 41
bilhões para o fundo ACR, se vê que ela é três vez menor do que aquela paga ao
FMI. Com a Rússia não é diferente. Sua contribuição para o FMI é de US$ 9.19 bilhões,
praticamente a metade do montante a ser investido no fundo ACR, cuja cota é de
US$ 18 bilhões. O mesmo se aplica para o Brasil e Índia. Diante desse números, não
é difícil entender a vontade de mudanças na estrutura de governança do FMI
pelos países BRIC. É certo que os BRIC se ressentem do fato de que apenas os
EUA e a União Européia decidem sobre a concessão dos empréstimos, com os fundos
que eles contribuem de forma expressiva para a instituição. A título de
exemplo, o FMI ao acordar empréstimos para a reestruturação financeira de
Portugal, Grécia, Irlanda e Ucrânia - os maiores devedores do FMI - não trouxe um
benefício econômico imediato direto para os BRIC, pois a balança comercial com
aqueles países não é importante para eles.
Finalmente durante o G-20,
em 2010, foi aprovada uma reforma na governança do FMI. Quando a reforma entrar em vigor,
os dez maiores acionistas serão os EUA, o Japão, os BRIC (Brasil, Rússia, Índia
e China) e as quatro maiores economias da União Européia: Alemanha, França,
Itália e Reino Unido. Mas, a reforma, embora aprovada pelos países membros do
FMI, até hoje ainda não saiu do papel. É necessária sua aprovação pelo
Congresso norte-americano, o que ainda não ocorreu e, parece, que o Congresso
não tem pressa em aprova-la. Mas, mesmo com a reforma do FMI, o poder de
decisão ainda ficará muito longe do controle dos países BRIC.
A criação do Banco de Desenvolvimento dos
países BRICS e a formalização do Acordo Contingente de Reservas, com
investimento de recursos bem maiores do que aqueles pagos ao Banco Mundial e ao
FMI, demonstra que está a caminho uma mudança no sistema econômico e financeiro
internacional criado no pós-guerra. Deixarão os BRICS de contribuir com o FMI e
o Banco Mundial num futuro próximo? Não parece que seja essa a intenção. Mas é
fato que, hoje, uma ameaça dos BRICS de abandonar as instituições gêmeas de
Bretton Woods, caso mudanças de governança não sejam implementadas num curto
prazo, é uma ameaça muito mais concreta. O Banco dos BRICS é com certeza um
movimento geopolítico importante, que pode colocar em cheque a estrutura
econômico-financeira criada no pós-guerra, e que certamente servirá de base de
apoio a esse bloco de países em futuras negociações geopolíticas. Para
parafrasear os dizeres clássicos de Alfred Sauvy, demógrafo que criou o
conceito de terceiro mundo num artigo do jornal L’Observateur em 1952: este
terceiro mundo tão ignorado e explorado, quer também se tornar alguma coisa.
Ligia Maura Costa. Professora Titular na FGV-EAESP. Advogada
em São Paulo.